Caso MC Poze do Rodo: Antropólogo explica a dicotomia entre arte e apologia ao crime
Preso por suposta associação ao tráfico, o funkeiro reacendeu o debate sobre o papel do gênero musical como expressão artística

A prisão de MC Poze do Rodo, investigado por suposta ligação com a facção criminosa Comando Vermelho (CV), trouxe à tona algo que ultrapassa a figura do artista carioca e levanta questões sobre debates sociais, políticos e jurídicos: quando o funk narra a realidade do tráfico, promove a criminalidade ou denúncia um cotidiano marcado pela ausência do Estado?
Ouvido pelo portal LeoDias, o antropólogo Vinícius Rodrigues, professor da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESP/SP), afirmou que essa discussão está longe de ser simples, mas é urgente. Segundo ele, o conteúdo das músicas de Poze pode tanto refletir uma romantização do crime quanto escancarar as condições que levam milhares de jovens a conviver diariamente com a violência, a pobreza e o narcotráfico. No entanto, o foco não deveria ser apenas o conteúdo das letras. “O ponto mais importante é a escolha do funk como objeto de aplicação da lei de apologia ao crime, sendo que outros gêneros musicais, como o ‘agrosertanejo’, também podem ser enquadrados no mesmo artigo. Várias canções naturalizam a violência contra as mulheres, por exemplo. O funk vem sendo criminalizado não por causa do conteúdo de suas letras; isso é apenas um pretexto, mas sim por sua origem preta e pobre”, argumentou o especialista.
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Para além da letra e do ritmo, está em jogo o histórico do funk. Gênero nascido e fortalecido nas favelas, ele tem sido sistematicamente alvo de censura e repressão, como afirmado por Vinícius: “Todos sabemos que não devemos tomar as narrativas criadas no funk como um documento que corresponde à verdade, mas sim como um documento artístico. Diferentemente de outros gêneros musicais, o funk cria baseado nas experiências dos jovens periféricos que o produzem e que vivem em um contexto em que o tráfico é uma realidade”, disse o antropólogo ressaltando que, diferentemente de outras formas de arte, o funk parte da vivência direta de seus criadores, que muitas vezes crescem em territórios onde o tráfico é tão presente quanto a escola ou o mercado.
Vinícius argumentou ainda que não se pode confundir o “eu lírico” com o indivíduo real. “É possível separar o discurso artístico da realidade justamente porque a arte é criação. Se não houvesse facções criminosas, a guerra às drogas ineficiente que o Estado promove, miséria e pobreza, com certeza os artistas do funk estariam cantando sobre outras coisas”, afirmou. Para ele, culpar o artista pela normalização da violência é ignorar que a própria estrutura do Estado a perpétua. “Quem normaliza a violência do tráfico é o próprio Estado que precisa deste mesmo tráfico para manter a população controlada através do medo. Sabemos que para o tráfico de substâncias ilícitas existir é necessário que vários setores do Estado, até as instituições de segurança pública, sejam coniventes”.
A reação das elites e das classes médias ao sucesso de artistas como Poze também revela tensões profundas. Enquanto há uma aparente aceitação do funk como produto cultural, a “tolerância” não se estende à autonomia cultural e econômica da favela como projeto coletivo, como explicou o antropólogo: “Nos casos isolados dos MCs de funk, já que existem muitos MCs, mas nem todos se tornarão MC Poze do Rodo ou MC Ryan, é uma autonomia econômica individual que reforça o discurso individualista do neoliberalismo. Portanto, é semelhante ao discurso do empreendedorismo ou do self-made-man das classes médias e altas”, analisou Vinícius.
O especialista vai além: o verdadeiro romantismo em torno do crime e da pobreza não vem dos funkeiros que retratam seu cotidiano, mas das classes altas que fetichizam a periferia. “As classes médias e altas, principalmente os jovens, tendem a exaltar toda cultura que consideram exótica e no caso das culturas periféricas esvaziam elas de sua potência política. Então, se tem alguém que romantiza a precariedade e a pobreza são essas classes mais abastadas e não os jovens, majoritariamente negros, que fazem e consomem funk”.
Em contraposição, há quem acredite que exista uma glorificação do crime que ultrapassa os limites da liberdade artística. Para essa parcela da sociedade, embora o funk seja uma expressão legítima da cultura periférica, é necessário discernir entre a representação da realidade e a exaltação de atividades criminosas. Além disso, críticos também dizem que a presença de letras que mencionam facções criminosas, uso de armas e ostentação de riqueza adquirida por meios ilícitos podem influenciar negativamente jovens em situação de vulnerabilidade.
Após sua prisão temporária no dia 29 de maio, MC Poze do Rodo teve sua liberdade restabelecida por decisão judicial. O desembargador Petersburgo Barroso, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, concedeu habeas corpus ao cantor nesta segunda-feira (2/6), argumentando que a prisão era desnecessária para o andamento das investigações e que houve excessos na condução da detenção, incluindo o uso de algemas e ampla exposição midiática.
As investigações continuam e a Polícia Civil apura a realização de shows em áreas controladas por facções, além da possível utilização desses eventos para atividades ilícitas.
A defesa do artista nega qualquer envolvimento com organizações criminosas e alega que a prisão foi baseada em interpretações subjetivas, sem provas concretas.
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